Eis aqui algumas
palavras de Jesus:
Convocando ele de novo
a multidão, disse-lhes: Ouvi-me todos e entendei. Nada há fora do homem que,
entrando nele, o possa contaminar; mas o que sai do homem é o que o
contamina... Porque de dentro, do coração dos homens, é que procedem os maus
desígnios, a prostituição, os furtos, os homicídios, os adultérios, a avareza,
as malícias, o dolo, a lascívia, a inveja, a blasfêmia, a soberba, a loucura.
Ora, todos estes males vêm de dentro e contaminam o homem. Jesus não pregou a bondade fundamental da
natureza humana. Ele certamente acreditava na verdade veterotestamentária, de que o ser humano, tanto homem como mulher, foi criado à imagem
de Deus; mas também acreditava que essa imagem havia sido maculada. Ele pregou
o valor dos seres humanos, inclusive dedicando-se a servir a eles. Mas também
ensinou que não valemos nada. Ele não negou que somos capazes de dar
"coisas boas" aos outros, mas também acrescentou que, mesmo que
façamos o bem, nem por isso deixamos de ser "maus". E nos versículos citados acima ele fez
importantes declarações sobre a extensão, a natureza, a origem e o efeito do
mal nos seres humanos.
Primeiro, ele ensinou
sobre o alcance universal da maldade humana. Ele não estava descrevendo o
segmento criminoso da sociedade, nem algum indivíduo ou grupo particularmente
corrupto. Pelo contrário, ele estava con¬versando com refinados,
"justos" e religiosos fariseus, e então generalizou, falando sobre
"um homem" e "homens". De fato, geralmente são as pessoas
mais honestas que têm a mais profunda consciência de sua própria degradação.
Tomemos como exemplo Dag Hammarskjöld, Secretário Geral das Nações Unidas de
1953 a 1961. Ele foi um servidor público profundamente comprometido, a quem W.
H. Auden descreveu como sendo "um homem bom, grande e louvável".
Mesmo assim, a visão que ele tinha quanto a si mesmo era muito diferente. Em sua
coleção de obras autobiográficas, intitulada Markings, ele escreveu sobre
"essa perversa contraposição do mal em nossa natureza", que nos leva
a fazer até do nosso serviço aos outros "o fundamento para a nossa própria
auto-estima e preservação da nossa vida".
Em segundo lugar, Jesus
ensinou sobre a natureza egocêntrica da maldade humana. Em Marcos 7 ele
enumerou treze exemplos. O que há de comum entre todos eles é que cada um é uma
afirmação do ego, seja contra o nosso próximo (inclusive homicídio, adultério,
furto, falso testemunho e cobiça - violações da segunda metade dos Dez
Mandamentos), seja contra Deus (sendo que "orgulho e insensatez" são
claramente definidos no Antigo Testamento como negação da soberania de Deus e
até da sua própria existência). Jesus resumiu os Dez Mandamentos em termos de
amor a Deus e amor ao próximo, e todo pecado é uma forma de revolta egoísta
contra a autoridade de Deus ou contra o bem-estar do nosso próximo.
Terceiro, Jesus ensinou
que a maldade do homem é de origem interna. Sua fonte se encontra, não em um
ambiente ruim, nem em uma educação falha (se bem que ambos possam exercer uma
forte influência sobre jovens impressionáveis), mas, sim, em nosso
"coração", nossa natureza herdada e pervertida. Quase se poderia
dizer que Jesus nos introduziu ao freudianismo antes mesmo de Freud. Pelo menos
aquilo que ele chama de "coração" é, em termos aproximados,
equivalente ao que Freud chama de "inconsciente". Isso nos faz
lembrar um poço bem profundo. A espessa camada de lama que jaz no fundo
geralmente não se vê, e muito menos se suspeita. Mas quando as águas do poço
são agitadas pelos ventos da emoção violenta, a imundície mais fétida e nojenta
sai borbulhando das profundezas e irrompe na superfície: ódio, raiva, lascívia,
crueldade, ciúmes e revolta. Em nossos momentos mais sensíveis nós somos
atormentados pela nossa potencialidade para o mal. E de nada adiantam
tratamentos superficiais.
Em quarto lugar, Jesus
falou do efeito contaminador da maldade humana. "Todos estes males vêm de
dentro", disse ele, "e contaminam o homem". Para os fariseus, a contaminação era algo
muito mais exterior e cerimonial; eles se preocupavam com alimentos limpos,
mãos limpas e vasilhas limpas. Mas Jesus insistiu em dizer que a contaminação é
algo moral, que vem de dentro. O que nos torna impuros aos olhos de Deus não é
o alimento que entra em nós (que vai para o nosso estômago), mas o mal que sai
de nós (que sai do nosso coração).
Todas as pessoas que já
conseguiram ver, ao menos de relance, a santidade de Deus, foram incapazes de
suportar essa visão, de tão chocadas que ficaram diante da sua própria e
contrastante impureza. Moisés escondeu o rosto, com medo de olhar para Deus.
Isaías gritou, horrorizado, chorando sua própria impureza e perdição.
Ezequiel ficou
ofuscado, quase cego, ao ver a glória de Deus, e caiu de rosto em terra. Quanto a nós, mesmo que nunca tenhamos tido,
como esses homens, sequer uma visão momentânea do esplendor do Deus
Todo-poderoso, sabemos muito bem que não temos condições de entrar em sua
presença, seja agora ou na eternidade.
Ao dizermos isso, nós
não estamos esquecendo a nossa dignidade humana, com a qual se começou este
capítulo. Devemos, no entanto, fazer jus à avaliação do próprio Jesus sobre a
maldade da nossa condição como seres humanos. Ela é universal (em todo ser
humano, sem exceção), egocêntrica (uma revolta contra Deus e contra o próximo),
íntima (brota do nosso coração, de nossa natureza caída) e aviltante (torna-nos
impuros e, portanto, indignos diante de Deus).