(Rm
3.10-18).
10. Como está escrito.
Até aqui Paulo arrazoa com o fim de convencer os homens da iniqüidade deles.
Agora começa seu argumento a partir da autoridade, a qual, para o cristão, é o
gênero mais forte de prova, contanto que a autoridade proceda unicamente de
Deus. Que os mestres da Igreja aprendam aqui o caráter de seu ofício. Se Paulo
não sustenta nenhuma doutrina que não pode ser confirmada pelo sólido
testemunho da Escritura, muito menos aqueles que não têm nenhuma outra comissão
senão a de pregar o evangelho, o qual receberam através de Paulo e de outros,
para que não se aventurem noutra direção.
Não
há justo. Fornecendo o sentido em vez de expressões reais, o
apóstolo parece ter anunciado, antes de tudo, a posição geral, para em seguida
descer a detalhes específicos. Ele define a substância do que o profeta declara
pertencer à natureza intrínseca do homem, a saber: que não ha um justo sequer,
em seguida enumera, com detalhes, os frutos dessa ausência de justiça.
11. O primeiro efeito consiste em que não há
ninguém que entenda. Esta ignorância é prontamente atestada
por sua impotência em buscar a Deus. O homem, em quem não há o conhecimento de
Deus, seja qual for a cultura que venha ele de alguma forma possuir, será
fútil; e até mesmo as próprias ciências e artes, as quais em si mesmas são
boas, tornam-se vazias de conteúdo real quando lhes falta este fundamento.
12.
E adiciona: não há quem faça o bem, significando que o homem se despiu de todo
senso de humanidade. Assim como nosso melhor laço de
comunhão recíproca reside no conhecimento de Deus (visto que, como ele é o Pai
comum de todos, nos reconcilia perfeitamente, e fora dele não há nada senão
desunião), também a desumanidade geralmente é produto de nossa ignorância de
Deus, quando cada um, tratando os demais com desprezo, ama a si próprio e busca
os seus próprios interesses.
13.
E acrescenta mais: sua garganta é sepulcro aberto, isto
é, abismo devorador dos homens. Isto é muito mais do que se dissesse que eram
antropófagos, visto que seria o cúmulo da monstruosidade que uma garganta
humana fosse bastante grande para deglutir e digerir completamente os homens.
As expressões suas línguas são cheias de engano, e veneno de áspides está
debaixo de seus lábios significam a mesma coisa.
14. Adiciona ainda a expressão:
sua boca está cheia de maldição e amargura. Este vício é o oposto do anterior.
O significado consiste em que os ímpios irradiam impiedade por todos os poros.
Se falam agradavelmente, estão a enganar [alguém], e instilam veneno com suas
galanterias. Porém, se expressam o que vai em seus corações, o que emana é
maldição.
15,16.
A expressão que Paulo adiciona, procedente de Isaías
- destruição e miséria estão em seus caminhos -, é a mais notável de todas,
pois é uma descrição da ferocidade de imensurável barbárie, a qual produz
desolação e devastação ao destruir tudo quanto se acha à sua frente.
17. Em seguida vem a frase:
Desconheceram o caminho da paz. Vivem tão habituados à rapina, a atos de
violência e injustiça, de selvageria e crueldade, tanto que não sabem mais agir
de forma humana e fraterna.
18. Em sua conclusão, novamente reitera,
em diferentes termos, o que afirmamos no início, a saber:
que toda a impiedade emana de uma desconsideração para com Deus. Ao olvidarmos
o temor de Deus, que é a parte essencial da sabedoria, não fica nenhum laivo de
justiça ou pureza. Sumariando, visto que o temor de Deus é o freio pelo qual
nosso instinto perverso é mantido sob controle, sua remoção desimpede em nós a
reação de todo gênero de conduta licenciosa.
Para evitar que alguém
considere estas citações como uma distorção de seu sentido original,
consideraremos cada uma delas em seu próprio contexto. No Salmo 14.3, Davi
afirma que havia uma perversidade tão inerente no homem, que Deus, fazendo um
detido exame em todos e individualmente, não consegue encontrar um sequer que
seja justo. Daí, segue-se que esta infecção [moral e espiritual] se disseminou
por toda a raça humana, já que nada escapa à introvisão divina. E verdade também
que no final do Salmo ele fala da redenção de Israel, porém a seguir
mostraremos de que forma e em que extensão os santos se desvencilham de tal
condição. O salmista, em outros salmos, se queixa da perversidade de seus
inimigos, prefigurando, em si e em sua progênie, um tipo do reino de Cristo. Em
seus adversários, pois, se acham representados todos quantos, estando alienados
de Cristo, não são guiados pelo Espírito Santo.
Quanto a Isaías, ele
expressamente menciona Israel, porém sua acusação se direciona e se aplica
melhor aos gentios. Não há dúvida de que a natureza humana é descrita nestes
termos a fim de que aprendamos o que é o homem quando é entregue a si mesmo,
visto que a Escritura testifica que todos quantos não são regenerados pela
graça de Deus se acham neste estado. A condição dos santos não será em nada
melhor, a menos que esta depravação seja corrigida neles. Que se lembrem,
contudo, que em sua natureza inerente não são em nada diferentes dos demais.
Vão sempre encontrar no que resta de sua natureza carnal, da qual não podem
escapar, as sementes desses males que produziriam continuamente seus efeitos
neles, não fossem os mesmos refreados através de constante mortificação dessa
natureza corrupta. Por isso são devedores à misericórdia de Deus, e não à sua
própria natureza. Conforme já observei acima (cap. 1.26), podemos acrescentar
ainda que, embora todos os vícios aqui enumerados não se fazem evidentes em
cada indivíduo, isto não impede de serem eles, com justiça e verdade,
atribuídos à natureza humana.