(Jesus disse) Contudo, há descrentes entre vós. Pois Jesus
sabia, desde o princípio, quais eram os que não criam e quem o havia de trair.
E prosseguiu: Por causa disto, é que vos tenho dito: ninguém poderá vir a mim,
se, pelo Pai, não lhe for concedido. À vista disso, muitos dos seus discípulos
o abandonaram e já não andavam com ele. Então, perguntou Jesus aos doze:
Porventura, quereis também vós outros retirar-vos? Respondeu-lhe Simão Pedro:
Senhor, para quem iremos? Tu tens as palavras da vida eterna (João 6.64-68).
Jesus diz que ninguém
pode vir a ele sem uma concessão do Pai. João relaciona isso com o comentário
de Jesus, que sabia desde o princípio quais eram aqueles que não criam e o
trairiam. Outra vez a reação ao ensino de Jesus é impressionante: muitos de
seus discípulos o abandonaram. Por que ficaram ofendidos pelas palavras de
Jesus? Se é dado às palavras um aspecto arminiano, não vemos razão para a
ofensa. Se entenderam que as palavras de Jesus estavam ensinando incapacidade
moral e uma dependência completa da graça de Deus, não havia por que ficarem
ofendidos. A doutrina de incapacidade moral tem ofendido a muitos, e muitos têm
rejeitado a teologia reformada precisamente por isso.
Também interessante é a
reação de Pedro às palavras de Jesus. Jesus perguntou a Pedro: "Você
também quer ir embora?"
"Senhor, para quem
iremos?" Pedro responde: "O Senhor tem as palavras de vida
eterna".
Essa resposta sugere
que Pedro estava menos do que apaixonado pelo ensino de Jesus. Ele pode ter
estado dizendo: "Eu não gosto desta doutrina mais do que aqueles que
saíram andando, mas aonde mais podemos ir? O Senhor é o professor que nós
seguimos e em quem confiamos. O Senhor tem as palavras de vida eterna, por isso
vamos ficar com o Senhor, mesmo se ensina algumas coisas difíceis".
Antes, no Evangelho de
João, Jesus diz algumas coisas semelhantes com respeito à incapacidade moral:
"Não murmureis entre vós. Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou,
não o trouxer (atrair), e eu o ressuscitarei no último dia" (Jo 6.43,44).
Apalavra-chave nesta afirmação é atrair. O que se quer dizer com esse atrair?
Muitas vezes já ouvi isso explicado que, para uma pessoa vir a Cristo, Deus, o
Espírito Santo, precisa primeiro atraída para depois se achegar. Temos a
capacidade, porém, de resistir a esse atrair e recusar o convite. Embora essa
atração seja uma condição necessária para se chegar a Cristo, não é uma
condição suficiente. É necessária, mas não força, não obriga. Nós não podemos
ir a Cristo sem sermos atraídos, mas o atrair não garante que nos chegaremos a
Cristo.
Estou persuadido de que
essa explicação é incorreta. Faz violência ao texto da Escritura, especialmente
ao sentido bíblico da palavra atrair. A palavra grega usada é elkõ. O
Theological Dictionary ofthe New Testament, de Gerhard Kittel, define elkõ como
significando "constranger, forçar por irresistível superioridade".
Linguística e lexicograficamente a palavra significa simplesmente
"compelir, atrair".
"Compelir" é
muito mais forte do que "atrair". Para ver a força desse verbo,
examinemos duas outras passagens no Novo Testamento em que se usa elkõ. A
primeira passagem está em Tiago 2.6: "Entretanto, vós outros
menosprezastes o pobre. Não são os ricos que vos oprimem e não são eles que vos
arrastam para tribunais?" Se substituirmos a palavra atrair aqui, o texto
seria: "Não são os ricos que vos oprimem e não são eles que vos atraem
para tribunais?"
A segunda passagem é
Atos 16.19: "Vendo os seus senhores que se lhes desfizera a esperança do
lucro, agarrando em Paulo e Silas, os arrastaram para a praça, à presença das
autoridades". Seria enganoso dizer que Paulo e Silas foram
"atraídos" às autoridades. Uma vez agarrados forçadamente, eles não
poderiam ser atraídos. O texto claramente indica que eles foram forçados a
comparecer diante das autoridades.
Uma vez fui convidado a
participar de um debate formal no assunto de uma eleição num seminário
arminianismo. Meu oponente era o chefe do departamento de Novo Testamento. Num
ponto crucial do debate, focamos nossa atenção no Pai "atrair"
pessoas a Cristo. Meu adversário apelou a João 6.44 para argumentar o seu ponto
que Deus "atrai" homens a Cristo mas nunca os força a vir. Ele
insistia que a influência divina sobre o homem caído se restringe à atração,
que ele interpretou como significando "cortejar".
A essa altura eu o
referi a Kittel e às outras passagens no Novo Testamento que traduzem a palavra
elkõ com a palavra arrastar. O professor estava pronto para mim. Citou um exemplo
em drama grego em que a mesma palavra é usada para descrever a ação de tirar
água de um poço. Ele olhou para mim e disse: "Bem, professor Sproul, a
gente arrasta água de um poço?" Instantaneamente o auditório caiu na
risada com esse uso da palavra grega.
Quando os risos
passaram, eu respondi: "Não, senhor, tenho de admitir que não arrastamos
água de um poço. Mas como tiramos água de um poço? Será que a atraímos: ficamos
em pé no alto do poço e chamamos: "aqui, vem água, água, água?"
E tão necessário Deus
nos atrair, ou nos virar para Cristo, como é puxar para cima o balde para beber
água do poço. A água simplesmente não virá por conta própria, não importa
quanto roguemos.
A questão de atrair ou
puxar precisa de mais exame. Quando o arminiano fala no atrair do Espírito,
será que ele crê que a ação do Espírito é externa à pessoa ou interna? É a
atração simplesmente o puxar para fora ou a força da pregação da Palavra? Ou
então o Espírito Santo de alguma maneira penetra até a alma e então faz sua
obra de atrair? E uma tentativa de persuasão interior? Caso seja, a ação do
Espírito ainda é externa à alma porque não faz nada que seja realmente para
compelir a alma.
Outras perguntas
difíceis são enfrentadas por arminianos a essa altura. Duas questões
importantes são as seguintes: Ia.) Deus atrai todos os homens igualmente? 2a.)
Por que algumas pessoas respondem favoravelmente à força de atração do Espírito
Santo?
Quanto à primeira
pergunta, se Deus não atrai todas as pessoas igualmente, então todas as
objeções à visão reformada de eleição incondicional precisam ser levantadas
aqui também. Deus não atrai todos os homens igualmente porque alguns têm maior
poder de responder do que outros? O arminiano pode responder que Deus atrai só
aqueles que ele sabe que responderão favoravelmente. Sendo assim, então Deus
nem tenta ganhar aqueles que nunca chegam à fé. Poucos, se é que alguns, arminianos estão dispostos a dizer isso.
A segunda pergunta é
esta: por que alguns respondem favoravelmente ao Espírito Santo em vez de
recusar o seu atrair? Se dizemos que a resposta está na intensidade do procurar
atrair (a saber, que o Espírito seduz alguns mais fortemente do que outros),
então estamos de volta ao problema da seleção soberana. Se dissermos em vez disso
que alguns respondem favoravelmente à sedução por causa de algo encontrado
neles, então enraizámos nossa salvação, em última análise, numa obra humana.
Será que a pessoa responde positivamente à sedução em razão de maior
inteligência ou maior virtude? Sendo assim, então temos algo sobre o qual nos
gabar.
Quando eu coloco essa
pergunta a meus amigos arminianos, eles prontamente vêem o dilema e buscam
evitá-lo, dizendo: "Claro que não é uma questão de inteligência ou de
qualquer virtude superior inerente naqueles que respondem positivamente. Eles
respondem assim porque vêem mais claramente sua necessidade de Cristo".
Com essa resposta eles cavam e se afundam mais no buraco. A resposta só adia o
problema um passo.
Por que algumas pessoas
vêem sua necessidade de Cristo mais claramente do que outras? Será que receberam
maior iluminação do Espírito Santo? São mais inteligentes? Têm menos preconceitos
contra Cristo e estão mais abertas a seu chamado, o que é em si uma virtude?
Não importa como se protela, mais cedo ou mais tarde temos de enfrentar a
questão de maior ou menor virtude inerente.
Seguindo a liderança de
Paulo em Efésios, a teologia reformada ensina que a própria fé é um dom
ofertado aos eleitos. Deus mesmo cria a fé no coração do crente. Deus mesmo
preenche a condição necessária para salvação, e ele faz isso sem impor
condição. Novamente olhamos as palavras de Paulo: "Porque pela graça sois
salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; não de obras, para
que ninguém se glorie. Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para
boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas"
(Ef 2.8-10).
Muito debate tem
decorrido com respeito ao sentido da primeira sentença. Qual é o antecedente ao
qual a palavra isto se refere: graça, salvos ou fé? As regras de sintaxe e gramática
grega pedem que o antecedente de isto seja a palavra fé. Paulo está declarando
o que toda pessoa reformada afirma, que fé é um dom de Deus. Fé não é algo que
fazemos aparecer por esforço próprio, ou o resultado do querer da carne. Fé é
um resultado da obra soberana do Espírito da regeneração. Não é acidente que
essa declaração concluía uma passagem que começa com a declaração de Paulo de que
temos sido renovados "no espírito do nosso entendimento" enquanto
estávamos num estado de morte espiritual.